Sobre o Memorial
A ideia da criação de um memorial de homenagem às pessoas escravizadas no âmbito do contexto histórico português surgiu pouco depois da fundação da Djass (maio de 2016). A Escravatura, o tráfico de pessoas escravizadas e o colonialismo português foram desde cedo temas centrais na atuação da associação, em particular pela sua relevância para a compreensão da situação de desigualdade e discriminação que os negros e as negras enfrentam atualmente em Portugal.
A inexistência, na capital do país, de quaisquer monumentos ou equipamentos que evoquem especificamente a relação histórica de Portugal com a Escravatura e o tráfico de pessoas escravizadas e ilustrem os seus legados, é reveladora do modo como o país lida com esse passado. Esta invisibilização contrasta de forma gritante com a narrativa histórica hegemónica que é transmitida pelos inúmeros monumentos e equipamentos culturais que pululam pela cidade, através dos quais se perpetua uma visão glorificadora da História do país e do império, com especial destaque para a época dos chamados “Descobrimentos”.
Perante esta lacuna e a demissão dos poderes públicos face a este reconhecimento histórico, o Orçamento Participativo de Lisboa, enquanto instrumento de exercício de uma cidadania direta, surgiu como a forma mais adequada para uma rápida e participada concretização de um memorial de homenagem às pessoas escravizadas.
Além de prestar homenagem aos milhões de pessoas africanas que foram escravizadas por Portugal ao longo da sua História, designadamente entre os séculos XV e XIX, o memorial visa:
Contribuir para o reconhecimento do papel central que Portugal, e em particular a cidade de Lisboa, tiveram na Escravatura e tráfico de pessoas escravizadas ao longo da História;
Celebrar a resistência das africanas e dos africanos contra a opressão da Escravatura;
Destacar a secular presença negra e africana em Portugal e o seu contributo para a economia, cultura e sociedade portuguesas;
Assinalar as continuidades históricas que ligam a Escravatura a sucessivas formas de opressão e discriminação que dela constituem um legado, desde o trabalho forçado que se seguiu à sua abolição e perdurou quase até à instauração da democracia, até ao racismo contemporâneo;
Contribuir para um conhecimento mais rigoroso e abrangente da História de Portugal, assumindo-se como um instrumento de pedagogia para as presentes e as futuras gerações.
Apesar da implementação de qualquer projeto vencedor do OP ser da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa (CML), a Djass manifestou desde o início do processo o seu interesse em participar ativamente nas decisões a tomar sobre este projeto que propusera, tendo a CML demonstrado, também desde o início, a sua abertura para tal. Um dos aspetos centrais da participação da Associação no processo prendeu-se com a sua pretensão, incluída na proposta inicialmente submetida ao OP, de que o Memorial, pelo seu simbolismo, fosse uma criação de um/a artista africana/o ou afrodescendente, pretensão que teve a concordância da CML.
Durante 2018 a Djass - Associação de Afrodescendentes manteve diversas reuniões com a equipa técnica da CML responsável pela operacionalização do processo de criação do memorial, para planeamento das suas etapas e estabelecimento das suas condições.
Em reunião da CML de 26 de junho de 2019 foi aumentada para 150 mil euros a dotação orçamental para execução do Memorial e confirmada a criação, numa segunda fase, de um centro interpretativo associado, que permita uma contextualização histórica mais aprofundada do memorial e dos temas relacionados e a realização de eventos ligados a esses temas. A disponibilidade de um edifício para acolher o centro interpretativo junto ao Largo José Saramago resultou na alteração do local para colocação do memorial, inicialmente proposto para a vizinha Ribeira das Naus.
Paralelamente, a Djass criou, em Março de 2018, um Grupo Consultivo constituído por ativistas com ligação ao movimento negro e antirracista e por investigadoras especialistas em história, estudos pós-coloniais, arte e museologia, para participar na definição do conceito do Memorial e no processo de escolha das/os artistas.
Composição do grupo consultivo:
Anabela Rodrigues (Ativista e dirigente do Grupo de Teatro do Oprimido de Lisboa e da Associação Solidariedade Imigrante)
Ângela Barreto Xavier (Investigadora do ICS/Univ. de Lisboa; Doutorada em História)
Flávio Almada / LBC (Rapper e ativista cabo-verdiano; dirigente da Associação Moinho da Juventude - Cova da Moura)
Isabel Castro Henriques (Investigadora do CEsA/ISEG/Univ. de Lisboa; D. História)
Joacine Katar Moreira (Ativista e dirigente do INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal e investigadora do CEI-IUL/ISCTE; D. Estudos Africanos)
Luzia Gomes (Professora na Universidade Federal do Pará, Brasil; D. Museologia)
Marta Araújo (Investigadora CES, Univ. Coimbra; D. Filosofia)
Marta Lança (Curadora artística, editora do portal BUALA, doutoranda em Estudos Artísticos FCSH/UNL)
Para a segunda fase do projeto, que incluirá a participação na conceção do projeto do Centro Interpretativo, integram o grupo mais dois membros:
João Figueiredo (Investigador da FDUNL; D. História)
Judite Primo (Docente e investigadora em Museologia na Univ. Lusófona; D. Educação)
O trabalho conjunto realizado na primeira fase pela Djass e o Grupo Consultivo culminou na elaboração dos termos de referência para o desenvolvimento do projeto do Memorial, que definiram os seguintes critérios:
O Memorial deve representar a Escravatura de uma forma ampla, incluindo as dimensões da memória, da resistência e dos legados e continuidades históricas, estabelecendo a ligação entre passado e presente; deve interpelar e convocar à reunião, ao ritual, à espiritualidade, ao luto, mas também à celebração, nomeadamente da resistência e da herança cultural africana; deve assumir-se igualmente como um instrumento de educação e reflexão crítica sobre o passado, o presente e o futuro.
O Memorial deve materializar essas múltiplas dimensões através de uma intervenção artística, designadamente escultórica ou arquitetónica, de cariz conceptual, contemporâneo e simbólico, por oposição a opções mais clássicas e figurativas, como é, por exemplo, o caso de estátuas representando figuras humanas.
Pelo simbolismo da sua temática, o Memorial será da autoria de um/a artista africano/a ou afrodescendente que reúna as seguintes características: ser oriundo/a de um país de língua portuguesa, para assegurar maior proximidade e ligação ao papel histórico de Portugal na Escravatura; ter um perfil artístico adequado à natureza contemporânea do projeto; ter um trabalho artístico anterior que, no seu todo ou em parte, revele uma reflexão sobre Escravatura, racismo, colonialismo, pós-colonialismo e questões análogas, em linha com os objetivos pretendidos com a criação do Memorial;
Atendendo à especificidade deste perfil, foram convidadas/os a apresentar propostas cinco artistas africanas/os e afrodescendentes;
A proposta vencedora será escolhida, não por qualquer das entidades envolvidas no processo (Djass, CML, Grupo Consultivo) ou por um júri externo, mas antes através de votação a realizar em sessões públicas de apresentação das mesmas, que decorrerão em locais da Área Metropolitana de Lisboa com significativa presença de pessoas africanas e afrodescendentes.
Com base nestes critérios, foram dirigidos convites a cinco artistas africanas/os e afrodescendentes, tendo três delas/es apresentado uma proposta: Grada Kilomba, Jaime Lauriano e Kiluanji Kia Henda.